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O dia em que quase perdemos nosso filho.

  • Foto do escritor: CLEIDIANE SILVA
    CLEIDIANE SILVA
  • há 19 horas
  • 7 min de leitura
O que era para ser um dia de festas, quase custou nossa família.
O que era para ser um dia de festas, quase custou nossa família.

O sol de setembro derramava uma luz clara e generosa sobre a propriedade rural dos meus pais. Era um domingo perfeito, feito sob medida para celebrações — e a nossa era especial: os 65 anos do meu pai, Mateus. O clã estava completo. Eu, Olívia, primogênita, observava a cena se desenrolar ao meu redor, cercada pelos cinco irmãos, suas esposas e maridos, e por uma nova geração de sobrinhos que trazia caos e alegria em igual medida.


A atmosfera era a trilha sonora de toda festa de família: risadas altas, gritos agudos das crianças correndo pelo quintal e o zumbido constante das conversas. Na varanda, os homens se reuniam em torno da churrasqueira, formando sua república particular. Meus irmãos, Júlio e Lúcio, com os cunhados e meu pai, comandavam o ritual do churrasco; a fumaça perfumada subia ao céu e o tilintar das garrafas marcava o ritmo do dia.


Enquanto isso, a cozinha funcionava como nosso quartel-general. Minha mãe, Maria, com a sabedoria de 45 anos de união com meu pai, movia-se com a calma de quem domina seu território. O calor do fogão a lenha realçava o brilho em seu rosto. Eu e minhas irmãs, Cristina e Graça, dividíamo-nos entre cortar legumes e arrumar a mesa, imersas naquele fluxo de trabalho e cumplicidade que só as mulheres da família entendem. Em um canto da sala, os adolescentes habitavam seu próprio universo, com as cabeças baixas e os rostos iluminados pelas telas dos celulares, alheios ao mundo ao redor.


Meu olhar, porém, buscava um refúgio no meio da agitação. Encontrei meu marido na sala de televisão, onde o barulho era menor. Ao seu lado, nosso filho Nyo estava completamente absorto em sua brincadeira, isolado do resto da festa.


Nossa vida reescreveu-se quando Nyo foi diagnosticado com autismo, aos um ano e meio. A rotina transformou-se em um quebra-cabeça de horários para dar conta de tudo: meu trabalho administrativo, os turnos do meu esposo e as vinte horas semanais de terapia que Nyo fazia em outra cidade. Nesse malabarismo, Ana — que o cuidava em sua pequena escolinha caseira desde os oito meses — tornou-se nosso porto seguro, a única rede de apoio em que podíamos realmente confiar.


Com a chegada do nosso filho, nossa presença em eventos familiares, festas e shows diminuiu significativamente. Não por preconceito, mas por necessidade de adaptação. Muitas vezes cancelávamos compromissos em cima da hora, percebendo que Nyo não estava bem regulado. Para evitar estresse, adotamos a estratégia de chegar cedo e sair antes que a festa ficasse muito cheia, ou assim que ele se sentisse desconfortável.


Por isso, os aniversários dos meus pais eram sagrados para mim. Especialmente no sítio, um lugar que oferecia tudo o que Nyo mais gostava: animais — galinhas, patos e leitões —; areia, terra à vontade e pedras com que ele adorava brincar. Havia também uma pequena piscina natural que meu pai fizera para colocar peixes, e, próximo à casa, um rio que cortava a estrada, com uma ponte que ligava os dois lados.


Sempre que chegávamos, íamos até o rio, onde ficávamos cerca de uma hora. Era um momento especial: catávamos pedras para Nyo jogar na água e observávamos a alegria em seu rosto diante das pequenas ondulações e dos salpicos. Esses momentos no sítio não eram apenas um refúgio para ele; eram uma forma de conexão com a natureza e com a família, criando memórias que nos uniam ainda mais.


Meus pais, pessoas simples, ainda se adaptavam à nova realidade, sem entender bem o que significava ter uma criança autista na família. Mesmo com a casa cheia, a segurança de Nyo era uma responsabilidade que meu esposo e eu revezávamos, sem delegar aos demais, que ainda pareciam achar nosso cuidado constante um exagero. A rotina dele era o nosso norte, incluindo um horário específico para o almoço. Em eventos como aquele, não havia um momento formal para a refeição dos adultos; enquanto as crianças e os adolescentes almoçavam, os adultos preferiam aproveitar o churrasco e as bebidas. Assim, enquanto todos petiscavam e conversavam, antecipei-me e preparei o prato do Nyo.


Atravessei a casa e levei a comida até a sala, onde a entreguei ao meu marido. Nosso garoto ainda precisava de um pouco de apoio com os talheres para se alimentar. Ali, naquele canto mais calmo, nosso pequeno núcleo familiar operava em sua própria frequência, garantindo que o mundo de Nyo mantivesse sua ordem, mesmo em meio à alegre desordem da festa. Voltei para a cozinha, enquanto meu filho almoçava, e fiquei conversando com minha irmã enquanto a panela aquecia no fogão.


— Amor, — ouvi Henrique me chamar.


— Estou indo. — Entrei na sala, já sabendo do que se tratava. Não podíamos reclamar do apetite do Nyo, que havia aumentado com o uso da medicação. Peguei o prato e fui até a cozinha para servi-lo novamente. Nesse meio tempo, meu esposo foi ao banheiro e pediu a alguém que ficasse de olho nos segundos em que ficaria ausente.


E foi nesse instante que o clima mudou completamente.


Voltei para a sala com a comida e não vi o Nyo.


— Você viu onde o Nyo foi? — perguntei a Felipe, meu sobrinho que estava na sala com eles.


— Não sei, tia. — A aflição começou a me invadir.


— O que houve, Olívia? — minha mãe perguntou, vindo em minha direção.


Não respondi. Em vez disso, comecei a olhar nos quartos.


— O Nyo... não sei onde está, — disse, com a voz tremendo.


Minha mãe correu até a cozinha, perguntando se alguém tinha visto o menino sair.


Meu esposo saiu rapidamente do banheiro; a expressão no rosto dele já dizia tudo.


— O Nyo... — ele começou, mas as palavras ficaram presas na garganta.


Correndo, fomos para fora da casa e olhamos em volta.


— Aqui ele não saiu, — disse meu pai, já embriagado, tentando entender a situação.


— Olhei no lago e nada, — respondi, o coração disparando. Henrique e eu nos olhamos e então, como se um pensamento comum tivesse surgido, dissemos em uníssono: — A ponte!


— Calma! — foi José, esposo de Graça, quem falou. Confesso que não combinava muito com ele; algumas atitudes dele me incomodavam. Mas, naquele momento, foi ele quem deu maior apoio e iniciativa.


— Henrique, corre até a ponte! Não faz muito tempo que ele saiu! — ordenou, enquanto nos dirigíamos na direção oposta, em direção à praça.


E assim fizemos. Henrique desceu correndo em direção à ponte; eu fui atrás do meu cunhado, o desespero crescendo no peito. Não sei dizer quem estava comigo ou atrás de mim. Minha mãe, devido à dificuldade de locomoção, ficou no portão, rezando em silêncio. Meu pai ainda estava sentado, tentando assimilar o que acontecia, perdido em seu estado de embriaguez.


Enquanto subíamos aquele morro correndo, o desespero tomava conta de mim. E se o Nyo tivesse caído da ponte? E se ele tivesse adentrado o matagal que nos cercava? Essas e outras interrogações martelavam na minha cabeça. Ele é uma criança! Ainda não verbal — não saberia dizer seu nome, onde mora, quem são seus pais!


Os pensamentos misturavam-se com o medo, formando um turbilhão que me consumia. Cada passo parecia mais pesado, a angústia espalhando-se como uma sombra opressora. Eu precisava encontrá-lo, precisava acreditar que ainda havia tempo.


Nunca me senti tão desesperada e sem forças quanto naquele momento. Percebi que minha própria vulnerabilidade não era nada diante da situação. A dor e o medo misturavam-se numa sensação inédita e avassaladora. Como pude? — Essa pergunta ecoava na minha mente como um mantra torturante. Sou mãe, responsável pela saúde, integridade e segurança dele. Como pude deixar algo assim acontecer?


A culpa infiltrava-se em cada pensamento, e a imagem do meu filho desaparecendo na floresta parecia uma faca cravada no peito. O coração palpitava com urgência e desespero; eu sabia que precisava agir, mas a paralisia do medo quase me impedia de continuar. Cada segundo arrastava-se como uma eternidade, e eu me perguntava se ainda havia esperança.


E foi como uma onda de alívio que vi meu cunhado vindo em minha direção, com o Nyo nos braços. Naquele momento, minhas forças esvaíram; as pernas cederam e o ar que me faltava já não chegava aos pulmões. Assim que peguei Nyo no colo, caí no chão, segurando-o com toda a força que me restava. Minha irmã estava atrás de mim, e meu marido logo chegou.


Ao perceber que ele estava bem, aos poucos voltei a respirar. Ver Nyo sorrindo, como se nada tivesse acontecido, foi a maior bênção que eu poderia receber.


— Deixa eu pegá-lo, — pediu Henrique, aproximando-se. Ele segurou Nyo firme nos braços, enquanto minha irmã me ajudava a levantar e caminhar em direção à casa.


Ao chegarmos, eu não sabia como a situação estava; não fazia ideia se a música continuava a tocar, quem estava na cozinha, na varanda ou na sala. Fomos em direção à sala, onde Henrique começou a recolher os brinquedos de Nyo espalhados pelo chão.


— Vamos embora, — ele anunciou, caminhando em direção ao carro, sem se despedir de ninguém. Minha mãe e minhas irmãs nos seguiram, tentando nos acalmar.


— Fique tranquila, mãe, — disse, tentando acalmá-la. — Estamos bem, vamos em paz.


Fizemos o percurso em silêncio dentro do carro. A tensão pairava no ar, e nossos pensamentos tomavam formas. Mesmo sem dizer uma palavra, sabíamos o que o outro pensava. Como pode uma casa cheia de gente e ninguém ver uma criança sair pela porta? Todos conheciam suas limitações e sua condição; como ninguém prestou atenção a ele?


Naquele momento, apertei com força a mão de Henrique, e ele compreendeu.


— Somos nós três. —


Nossa união precisava ser firme e inabalável pelo bem do Nyo. Sentia a responsabilidade pulsando entre nós, como um elo invisível que nos unia. Precisávamos ser um porto seguro para ele, juntos, enfrentando as dificuldades que a vida nos impunha. O silêncio no carro era pesado, mas também carregava a determinação de que, a partir daquele instante, lutaríamos ainda mais para proteger nosso filho.




 
 
 

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